Weekly Note
Reserva Federal americana anuncia medidas adicionais
Algumas medidas repõem o mandato original da Fed em 1913
Na passada segunda-feira, dia 23 de março, a Reserva Federal (Fed) anunciou novas medidas destinadas a assegurar a continuação do funcionamento dos mercados e a fornecer a liquidez necessária para que as empresas possam sobreviver perante as atuais dificuldades decorrentes da crise Covid-19. Segundo a Fed, as novas medidas, como um todo, deverão disponibilizar crédito à economia num valor até 300 mil milhões de dólares. Adicionalmente, os responsáveis da Fed afirmaram que tencionam apresentar em breve um programa de empréstimos diretos a pequenas e médias empresas.
No que respeita ao programa de compra de ativos que já havia sido anunciado na semana anterior – no valor de 700 mil milhões de dólares (composto por 500 mil milhões de dólares em obrigações do Tesouro e 200 mil milhões de dólares em dívida hipotecária) – a Fed optou por ir mais longe, retirando agora os montantes indicativos para passar a comprar títulos “nos montantes que forem necessários”.
Evolução recente dos ativos totais da Reserva Federal
Relativamente às novas medidas anunciadas, destaca-se em específico:
- Estabelecimento da linha de financiamento Primary Market Corporate Credit Facility (PMCCF) destinada a adquirir emissões de obrigações de empresas com rating igual ou superior a investment grade;
- Estabelecimento da linha de financiamento Secondary Market Corporate Credit Facility (SMCCF) destinada a comprar obrigações de empresas em mercado secundário, podendo incluir também a compra de fundos ETF de obrigações;
Ambos os programas terão duração até 30 de setembro de 2020. Na semana anterior, já tinham sido anunciadas:
- Linha de financiamento de papel comercial às empresas Commercial Paper Funding Facility (CPFF), sem limite máximo e com duração de 1 ano;
- Linha Money Market Mutual Fund Liquidity Facility (MMLF) destinada a apoiar os fundos de investimento que se deparem com ondas de resgates.
Evolução do risco de crédito das emissões de papel comercial nos EUA
As medidas anunciadas representam um esforço significativo e uma alavanca de elevada envergadura para que o setor empresarial possa sobreviver apesar do colapso temporário da atividade económica. Importa referir também que a gama de ferramentas anunciada para apoiar o crédito às empresas representa uma reposição do mandato inicial da Fed que passará efetivamente a agir como credor direto de último recurso à economia.
De facto, quando foi promulgado o Federal Reserve Act, em 1913, a ideia base era dotar a Fed com uma dupla missão, muito simples: “fornecer uma moeda elástica”, ou seja, ser o credor de último recurso, e “estabelecer uma supervisão mais efetiva do setor bancário”. Não havia qualquer referência à “estabilidade de preços” ou ao “pleno emprego”. A Fed só podia “estimular” a economia através da compra de papel comercial quando os bancos não tivessem condições para emprestar. Desta forma, as empresas obtinham financiamento reduzindo a necessidade de despedimentos em alturas de crise. A ajuda direta às empresas permitia a sua sobrevivência e fornecia as condições para o seu restabelecimento, dando origem a um posterior reembolso da dívida que assim fazia jus ao termo “elástico”.
A Reserva Federal foi criada como um sistema descentralizado, composto por 12 sucursais, com autonomia na condução da política monetária e fixação da sua própria taxa de juro. O objetivo era obter a maior eficácia possível na gestão dos fluxos de capital domésticos. As taxas de juro deveriam descer nos locais em que existisse excesso de capital e deveriam subir nos estados em que existisse escassez do mesmo. Esta condução de política permitia a movimentação do capital entre as diversas sucursais, contribuindo para o equilíbrio dos fluxos de capital e da economia.
Distribuição das 12 sucursais da Reserva Federal em 1913
Ao longo do tempo e acompanhando a “evolução” das teorias económicas, a estrutura, a missão e os poderes da Fed foram sendo alvo de alterações. Destaque para a influência da teoria keynesiana, à luz da qual a Fed deveria atuar sobre a procura agregada e controlar a inflação, o que supostamente lhe daria a capacidade para controlar o ciclo económico, “impedindo” o surgimento de recessões/depressões.
Aquando da 1ª Guerra Mundial, o Congresso ordenou que a Fed passasse a comprar obrigações do governo, ao invés da dívida de empresas. Nessa altura, o propósito original de criação de “moeda elástica” através da compra de dívida de empresas foi abandonado e assim se manteve até agora.
A 23 de agosto de 1935, o presidente Franklin D. Roosevelt, promulga o Banking Act de 1935, que altera de forma significativa a estrutura original da Fed. O decreto concede ao Conselho de Governadores um maior poder no controle da política monetária. De relembrar que os membros deste Conselho são escolhidos pelo presidente e aprovados pelo Congresso. Roosevelt transforma a estrutura da Fed num sistema centralizado em Washington, com uma taxa de juro única e com uma perda significativa de autonomia por parte das sucursais. O sistema passa a seguir o mote “one size fits all”.
A maior influência política sobre o sistema da Reserva Federal é visível no episódio histórico que tem início em abril de 1942, ainda sob a presidência de Roosevelt. Nessa altura, o Departamento do Tesouro requere que a Fed mantenha um peg das taxas de juro dos títulos do Tesouro a 0,375%, substancialmente abaixo dos níveis normais de mercado de 2% a 4%. A intenção era estabilizar o mercado de títulos e permitir que o governo obtivesse financiamento mais barato para fazer face às despesas com a participação na 2ª Guerra Mundial. A Fed foi obrigada a comprar títulos do Tesouro apesar dos membros do FOMC (comité responsável pelo estabelecimento da política monetária) estarem em desacordo. Em 1945, Harry S. Truman torna-se presidente dos EUA e, apesar do fim da guerra, é solicita à Fed a mantenção do peg. Os anos seguintes foram marcados por forte desacordo entre a Fed e o governo, com o FOMC a alertar para os riscos de excesso de inflação em resultado da manutenção do peg. Em 1951, em virtude do disparo da inflação, a Fed informa o Tesouro de que não estavam dispostos a “manter a situação existente”. Como o Tesouro enfrentava dificuldades, pois necessitava de refinanciar a dívida existente e emitir nova dívida, foi negociado um acordo entre as partes segundo o qual a Fed continuaria a dar suporte aos títulos de dívida pública durante um curto período, após o qual o mercado deveria passar a funcionar de forma independente.
A ferramenta de criação de “moeda elástica”, que deve ser utilizada nas alturas de crise, revela-se adequada e eficaz enquanto estímulo económico por oposição à compra de dívida de governos. A “moeda elástica” prevê que a Fed compre obrigações de empresas nos momentos de crise em que os bancos não têm condições para emprestar. As empresas têm todos os incentivos para se restabelecer, sob pena de enfrentarem falência, e como tal tenderão a reembolsar as obrigações permitindo a posterior contração da oferta de “moeda elástica” na fase de recuperação. Pelo contrário, a dívida dos governos é refinanciada perpetuamente, já que os estados não correm o risco de “falir” ou “desaparecer” da mesma forma que as empresas. O incentivo ao restabelecimento é muito mais fraco no caso dos governos. Para além disso, a compra de dívida pública constitui um estímulo indireto que falha em chegar ao setor privado. Numa situação de crise, a ausência de confiança no futuro não possibilita o funcionamento do mecanismo de transmissão impedindo a canalização da massa monetária criada para o setor privado e para o consumidor. A injeção de liquidez mantém-se paralisada nos balanços dos bancos. O programa de Quantitative Easing levado a cabo pelo BCE nos últimos anos é disso exemplo.
Em suma, a Fed decidiu implementar um pacote de medidas substanciais para fazer face à crescente crise do Covid-19. A Sixty Degrees considera positivas as medidas de financiamento direto às empresas, que representam uma reposição do mandato inicial da Fed e poderão revelar-se efetivamente eficazes na tentativa de recuperação da economia.