Weekly Note
Escassez de dólares no sistema financeiro mundial
Sixty Degrees analisa possível crise de liquidez
Tal como referimos nas duas últimas weekly notes, os EUA têm avançado com importantes medidas de política monetária e fiscal destinadas a suportar a economia e os mercados no seguimento da atual crise de Covid-19.
No mês passado, a Reserva Federal (Fed) cortou as taxas de juro de referência por duas vezes, num total de 1,5 pontos percentuais, para um intervalo entre 0% e 0,25%. Adicionalmente, foi anunciado um pacote de compra de ativos – obrigações do Tesouro e dívida hipotecária – sem limite indicativo, isto é, “nos montantes necessários”. A Fed anunciou ainda as seguintes linhas de financiamento direto às empresas: Primary Market Corporate Credit Facility (PMCCF), Secondary Market Corporate Credit Facility (SMCCF), Commercial Paper Funding Facility (CPFF) e Money Market Mutual Fund Liquidity Facility (MMLF).
Por seu lado, o Congresso aprovou um pacote de estímulos fiscais, no valor de 2 biliões de dólares, equivalente a 10% do PIB e o dobro do prometido pelo Congresso durante a crise de 2007-08. Segundo alguns analistas, no seu todo, estas medidas poderão traduzir-se numa injeção de liquidez de 6 biliões de dólares para empresas e consumidores, durante os próximos 9 meses. Por comparação, na Europa, as garantias de crédito já anunciadas pelos diversos governos, em especial o inglês e o francês, atingem 15% dos respetivos PIB’s.
Após um movimento inicial de repatriamento de capitais que resultou na desvalorização rápida do dólar (EURUSD voltou aos 1,15, numa semana), via desmontagem dos diversos carry trades, a moeda norte americana voltou a valorizar-se, tendo terminado março praticamente no mesmo nível de fevereiro (1,1016). Nesta fase importa colocar a seguinte questão: como é possível que após o anúncio de todos estes estímulos, o dólar se tenha mantido estável face às principais moedas mundiais? É nosso entendimento que a resiliência do dólar decorre de ser a moeda de reserva e da existência de uma elevada escassez dessa moeda a nível global.
De facto, apesar do pacote de medidas referido acima, os mercados continuaram a sinalizar a existência de escassez de dólares no mercado interbancário. Tal como se pode observar no gráfico abaixo, em meados do mês passado, o spread FRA/OIS (que mede o diferencial entre a taxa do interbancário LIBOR e a taxa overnight sem risco/Federal Funds rate) atingiu valores próximos de 80bp, regressando a níveis verificados na crise de 2007/09. A subida deste diferencial é indicadora de tensões crescentes no financiamento interbancário em dólares.
A subida do diferencial FRA/OIS indica tensões no financiamento interbancário em dólares
A situação de turbulência vivida no “repo market” americano já tinha tido início em setembro passado, quando a taxa de juro subiu de forma súbita atingindo os 10%, ou seja, cerca de quatro vezes a taxa de referência da Reserva Federal, em vigor na altura. Esta crise tem-se prolongado no tempo e foi exacerbada pelas respostas governamentais ao surto de covid-19, com os bancos a duvidarem ainda mais uns dos outros em função da provável deterioração da qualidade de crédito dos seus livros. Durante o mês de março, a Fed viu-se obrigada a intervir ainda mais ativamente neste mercado, revendo em alta o teto das suas operações diárias para 175 mil milhões de dólares, tal como se pode observar no gráfico abaixo.
A crise no “repo market” americano continua a subsistir
Também no mês de março, assistimos a fortes variações no mercado de swaps cambiais, denunciando uma elevada procura de dólares sobretudo por troca de ienes e euros.
Os investidores estão dispostos a pagar mais para trocarem as suas moedas por dólares a 3 meses
Em resultado desta situação (crise de liquidez), a Fed veio anunciar medidas específicas, no final do mês passado. No dia 20 de março, a Fed anunciou uma ação coordenada com o Banco Central do Canadá, Banco do Japão, BCE e Banco Nacional Suíço para aumentar a frequência, das operações de swap cambial com vencimento de 7 dias, de semanais para diárias. Já no dia 31 de março, a Fed anunciou o estabelecimento de uma linha de operações “repo” com bancos centrais estrangeiros. A linha permite aos bancos centrais estrangeiros trocarem de forma temporária os seus títulos do Tesouro americano, detidos junto da Fed, por dólares. A linha FIMA Repo facility (Foreign and International Monetary Authorities) estará disponível a partir de 6 de abril e deverá durar pelo menos 6 meses. O objetivo é aliviar as tensões nos mercados e suportar o funcionamento do mercado de dívida americano ao providenciar uma alternativa de obtenção de dólares que não a venda dos títulos do Tesouro em mercado aberto.
De acordo com o BIS (Bank of International Settlements), existe atualmente uma escassez de dólares a nível mundial no valor de cerca de 13 biliões de dólares, calculada através da dedução dos passivos denominados em dólares à oferta de moeda incluindo reservas, que precisa de ser resolvida para servir os mais variados passivos.
Segundo dados do BIS, o montante de obrigações denominadas em dólares emitidas por países europeus, emergentes e China aumentou de 30 para 60 biliões de dólares, entre 2008 e 2019. Desta forma, muitas entidades não domésticas aumentaram a sua exposição a dívida emitida na moeda dos EUA, necessitando cada vez mais de dólares para efetuar o seu reembolso. Esta escassez poderá atingir os 20 biliões de dólares, já no final deste ano, em resultado do recuo estimado nas receitas de exportação destes países decorrente da crise Covid-19.
De facto, apesar da economia americana pesar 15% no PIB mundial, o dólar é sem dúvida a moeda de reserva a nível global representando cerca de 60% das reservas, 80% dos pagamentos e a quase totalidade das vendas de petróleo. Por outro lado, aproximadamente 40% da dívida mundial é emitida em dólares. Ao mesmo tempo, são inúmeras as instituições e as empresas à volta do mundo que tem procurado assegurar e levantar as suas linhas de crédito em dólares, como forma de fazer face às suas necessidades de funding.
O volume total dos empréstimos a empresas denominados em USD tem aumentado consistentemente desde 2010
A atual escassez de dólares também está relacionada com o diferente desempenho dos programas de Quantitative Easing (QE) levados a cabo nos EUA e na Europa. A Fed e o BCE implementam QE de forma muito distinta, decorrente das diferenças existentes entre o sistema americano e o sistema do Euro, em especial devido ao facto dos EUA possuírem uma dívida federal única por contraponto à Europa que nunca quis consolidar as dívidas dos estados.
Assim sendo, aquando da crise de 2007/09, a Fed expandiu a oferta de moeda através de um programa de compra de títulos de dívida federal. Em dezembro de 2013, a Reserva Federal anunciou a retirada dos estímulos, deixando vencer os títulos adquiridos e dando prova do “sucesso” da sua intervenção.
No período entre 2014 e 2020, a Fed conseguiu reduzir a dimensão do seu ativo
Por seu lado, o BCE levou a cabo o programa OMT (Outright Monetary Transactions), que consistiu na compra de dívida pública de estados membros sob stress financeiro. Um parecer jurídico do Tribunal de Justiça Europeu foi favorável ao OMT, reforçando assim os poderes do banco central, por oposição ao entendimento do Tribunal Constitucional alemão que considerou que o programa violava o enquadramento legal europeu, nomeadamente a proibição do BCE em financiar os orçamentos dos estados membros. Em 2014, o BCE também introduziu taxas de juro negativas com o intuito de incentivar os bancos a emprestar. Porém, a ausência de confiança no futuro não possibilitou o funcionamento do mecanismo de transmissão impedindo a canalização da massa monetária criada pelo BCE para o setor privado e para o consumidor. Em relação ao programa de compras de dívida pública, a ausência de retoma implicou o seu prolongamento e o BCE viu-se obrigado a reinvestir as amortizações de capital e juros em novas obrigações dos governos da Zona Euro. O BCE tornou-se incapaz de interromper a sua política de compras, já que isso desencadearia uma subida das yields soberanas, colocando em cheque os orçamentos dos governos europeus, na sua maioria ainda muito endividados. Deste modo, e contrariamente ao caso americano, o QE levado a cabo na crise 2007/09 tornou-se numa detenção permanente da dívida dos estados ao invés de uma intervenção temporária no ciclo económico.
No período entre 2014 e 2020, o BCE mais do que duplicou a dimensão do seu ativo
O falhanço do QE europeu gerou uma desconfiança crescente no sistema do Euro, incentivando o direcionamento dos fluxos de capitais internacionais para os EUA, vistos cada vez mais como um porto seguro para o capital.
A crise de liquidez no “repo market” americano espelha a escassez de dólares existente no sistema. No nosso entendimento, o surgimento desta crise não está relacionado com a esfera da economia doméstica americana. Estamos convencidos que o risco de um evento de crédito na Europa, com contágio para o mercado norte-americano, poderá ser a melhor explicação que já ouvimos. De relembrar que a política de bail-in’s, em vigor na Zona Euro, deixa os seus bancos mais vulneráveis a eventuais choques e mantém a desconfiança face à qualidade dos seus balanços. Na nossa opinião, a única razão pela qual a crise surge no mercado interbancário americano decorre do facto deste ser, no momento atual, o único que funciona livremente, já que na Europa permanece sob intervenção do banco central.
Em suma, a Sixty Degrees considera que existe uma escassez de dólares no sistema financeiro decorrente das necessidades externas mencionadas e agravada pelas necessidades domésticas resultantes da pandemia covid-19. Esta situação é especialmente gravosa numa altura em que os fluxos de capital tendem a direcionar-se para os EUA, em fuga das restantes regiões, como a Europa, que apresentam nesta fase enormes vulnerabilidades e incertezas.
A situação atual reforça a nossa convicção da valorização da moeda americana contra as principais moedas mundiais, no médio prazo, e que poderá levar ao reset do sistema monetário internacional.