Weekly Note
Líderes europeus chegam a acordo sobre programa fiscal
Sixty Degrees cautelosa quanto a potencial impacto
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Na semana passada, após 4 dias de intensas negociações, os líderes da União Europeia (EU) selaram finalmente o acordo relativo ao novo Fundo de Recuperação (FR) e ao próximo Quadro Financeiro Plurianual (QFP).
O Fundo de Recuperação (“Next Generation EU”) envolve 750 mil milhões de euros, correspondente a 5% do PIB da EU, em 2019, e destina-se a financiar um conjunto de programas, definidos quer a nível nacional, quer pela Comissão Europeia. Dos 750 mil milhões de euros, 390 mil milhões de euros são para transferir a fundo perdido para os países e 360 mil milhões de euros são empréstimos. A proporção entre estas duas componentes foi um dos aspetos de maior atrito nas negociações, já que tanto o plano franco-alemão, como a proposta da Comissão Europeia, defendiam subvenções num montante de 500 mil milhões de euros, o que acabaria por ser rejeitado pelos chamados países “frugais” (Holanda, Áustria, Dinamarca e Suécia), que exigiram que a parcela entregue a fundo perdido ficasse abaixo de 400 mil milhões de euros.
Por forma a financiar as verbas do Fundo de Recuperação, a Comissão Europeia irá emitir dívida nos mercados, a qual terá de ser reembolsada até 2058. Os vários governos dos estados membros deverão submeter os seus “planos nacionais de recuperação”, ou seja, a sua “agenda reformista”, a qual terá de ser avaliada pela Comissão Europeia e aprovada por uma maioria qualificada do Conselho Europeu. A aprovação das verbas e a sua alocação terá de ficar definida em 70%, entre 2021 e 2022, e 30%, em 2023. No que respeita ao orçamento da UE, ou QFP, o valor acordado foi 1,074 mil milhões de euros, para aplicar entre 2021 e 2027, a ser financiado pelas contribuições anuais dos estados membros.
Os mercados de ações e de dívida reagiram positivamente ao acordo. Não há dúvida de que a primeira emissão de dívida federal representa um passo importante para a EU. Pela primeira vez, os países da União assumem em conjunto uma emissão de dívida para financiar um programa de recuperação parcialmente composto por subvenções. No limite, o acordo alcançado parece demonstrar a existência de suporte político à união económica e monetária, na tentativa de reduzir o risco de fragmentação.
Apesar disso, convém contextualizar a dimensão e o significado mais prático deste passo.
A Comissão Europeia não divulgou a alocação de verbas por país, já que esta estará dependente da trajetória do PIB e da taxa de desemprego das várias economias. No entanto, os governos espanhol e italiano avançaram com estimativas de recebimento de subvenções de 82 e 72 mil milhões de euros, respetivamente, equivalente a 4,6% e 5,8% do seu PIB, em 2019. Já o primeiro ministro grego estima receber cerca de 19 mil milhões de euros, ou seja, 10,5% do seu PIB. Embora sejam valores significativos, na verdade tornam-se diminutos tendo em conta as dificuldades apresentadas por estas economias. A título de exemplo, o défice orçamental em Itália deverá aumentar cerca de 10% do PIB, em 2020, e a dívida pública deverá passar de 135% do PIB, em 2019, para 160%, este ano, o que só por si representa 5 vezes mais que o valor de subvenções a receber.
Importa também salientar que apesar de 70% das alocações terem de ficar definidas, em 2021 e 2022, e as restantes 30%, em 2023, os fundos efetivamente poderão só vir a ser desembolsados ao longo de vários anos.
Apesar deste avanço no sentido de algum federalismo, é claro que a União continua numa fase muito incipiente quando comparada com o sistema federal norte americano, que aliás foi constituído com base na mutualização, a preços de mercado, de toda a dívida dos Estados.
Nos EUA, a despesa federal, em 2019, representava 21% do PIB. Por comparação, estima-se que as subvenções de 390 mil milhões de euros do Fundo de Recuperação Europeu representarão apenas 0,4% do PIB anual da EU durante o período orçamental de 7 anos. Mesmo considerando o valor total do FR (750 mil milhões de euros) e do QFP (1,074 mil milhões de euros) em conjunto, estes representarão apenas 1,9% do PIB anual da EU durante o período de 7 anos.
A resposta fiscal da UE fica muito aquém da despesa federal anual nos EUA, em % do PIB
Tal como se pode observar no gráfico abaixo, segundo dados do Rockefeller Institute of Government, nos EUA as transferências fiscais líquidas para os estados mais pobres igualaram 11% do seu PIB, em cada ano, no período entre 2015-2018, enquanto as contribuições líquidas dos estados mais ricos representaram cerca de 5% do seu PIB. Estes valores comprovam o elevado alcance das transferências fiscais nos EUA.
Transferências fiscais líquidas para os estados mais pobres equivalentes a 11% do PIB (2015-18)
Por outro lado, a experiência passada de anteriores programas de estímulo na UE deixa muitas dúvidas sobre o potencial impacto positivo do atual Fundo de Recuperação na economia europeia. De recordar que, em julho de 2009, a EU lançou o “Plano Europeu de Recuperação Económica”, que representava 1,5% do seu PIB e visava ajudar a economia a recuperar da crise. O programa destinava-se especificamente a dinamizar o emprego nos setores de infra-estruturas, construção e comunicações. De salientar também, o lançamento do “Plano Juncker”, em 2014, que mobilizou 360 mil milhões de euros em vários projetos. Entre 2004 e 2018, seguiram-se também uma série de programas “verdes” destinados a implementar a transição energética na UE, mas que muitas vezes também implicaram aumentos de impostos e medidas protecionistas.
Já para não mencionar a grandeza dos programas de estímulo do próprio BCE, os quais temos vindo a referir repetidamente nestas weekly notes. Desde a crise financeira que o BCE tem levado a cabo vários programas de compras de ativos (dívida soberana) e implementado taxas de juro negativas. Em maio de 2020, o balanço do BCE representava 44% do PIB da Zona Euro versus 30% no caso da Reserva Federal.
Os resultados obtidos com todos estes estímulos foram fracos. Nos últimos anos, a Zona Euro tem sofrido revisões em baixa ao seu crescimento. No quarto trimestre de 2019, o panorama já era de fraqueza, com a Alemanha próxima de recessão, França e Itália a registarem estagnação e Espanha a desacelerar fortemente.
Importa questionar a que se ficará a dever o insucesso dos planos de estímulo na Europa versus, por exemplo, os EUA? Uma das principais explicações parece ser o facto de assentarem numa lógica de “planeamento central” da economia. A maioria destes planos inclui fortes diretrizes sobre onde e como se deve investir. Frequentemente, o dinheiro acaba por ser canalizado para setores com excesso de capacidade e/ou próximos do poder político, cujo resultado é o aumento de empresas “zombie”. O perpetuar dos “campeões nacionais”, aliado à elevada carga regulatória e fiscal, impede muitas vezes o vingar das empresas mais inovadoras, explicando também assim a ausência de gigantes tecnológicos na Europa.
Assim sendo, o problema da Europa não parece ser a falta de estímulos, já que vários programas foram tendo lugar uns a seguir aos outros. Neste contexto, torna-se mais difícil acreditar que o recente Fundo de Recuperação possa ter impactos verdadeiramente positivos no crescimento económico europeu.
Em suma, apesar do acordo alcançado ser um passo em frente no projeto europeu, a Sixty Degrees tem alguma cautela no que se refere ao seu impacto real no crescimento económico da UE. Nesta fase, consideramos que a atuação do BCE, através dos programas de compras de ativos em curso, continuará a ser o principal suporte à manutenção em baixa das yields soberanas europeias, evitando a implosão dos orçamentos de alguns Estados da União. Para que a Europa possa recuperar uma trajetória sustentada de maior crescimento, terá de refletir sobre as origens da sua fraqueza, nomeadamente sobre as falhas na conceção do sistema do Euro, o qual não visou a mutualização das dívidas dos estados membros e que permite a criação de moeda através das dívidas dos Estados membros.