Weekly Note
Requalificar para o futuro
O desafio Chinês
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Ao longo dos últimos 30 anos, o sistema educativo e de desenvolvimento de talento chinês acompanhou as mudanças da economia e do país como um todo. Ao serviço da economia industrial, assente na manufatura, nas infraestruturas e no investimento, estes sistemas de educação e formação moldaram-se para potenciar as capacidades requeridas pela economia e potenciar o crescimento. Como resultado desta expansão, ao longo dos últimos 30 anos, o PIB chinês cresceu 1300% e a produtividade do trabalho viu-se multiplicada por 10.
Contudo, à medida que a economia se transforma e passa a estar mais assente nos serviços, no consumo e na inovação, estes sistemas precisam, uma vez mais, de se transformar para acompanhar a mudança. A digitalização e a automação que advêm desta mudança ameaçam a estabilidade no trabalho de muitos milhões de pessoas, que precisam agora de adquirir novas capacidades e conhecimentos para se conseguirem adaptar a um mundo em constante mudança e enfrentar a inevitabilidade do fim da ideia de “um trabalho para a vida”.
Apesar desta mudança estrutural, a China tem objetivos muito ambiciosos de crescimento que pretende alcançar nos próximos anos. Até 2050, a ainda segunda maior economia do mundo, ambiciona alcançar um PIB per capita de 70% do apresentado pelas economias de alto rendimento, comparado com os 27% verificados hoje. Neste cenário, a China necessitaria de um crescimento de 4,7% por ano do PIB per capita e de 4,9% do salário anual por pessoa.
Nesta Weekly Note, baseada e sustentada pelo artigo “Reskilling China – Transforming the world’s largest workforce into lifelong learners”, da McKinsey Global Institute, procuramos realçar os maiores desafios que se colocam à dinâmica desta “revolução”, no ensino e na formação, bem como aos meios que a China pode utilizar para os enfrentar.
Existem três grandes transições que a China tem de realizar para conseguir alcançar este objetivo.
Primeiramente, até 2030 e devido ao crescimento da automação, cerca de 220 milhões de trabalhadores enfrentarão a necessidade de mudar de trabalho, aproximadamente um terço de todas as mudanças estimadas a nível mundial para esse período.
Em segundo lugar, e como será desenvolvido mais à frente neste artigo, terá de ser conduzida uma forte mudança ao nível das capacidades dos trabalhadores. Até 2030, estima-se que cerca de 87 dias/ano por trabalhador precisam de ser deslocados ou realocados devido à automação.
Por último, é necessário existir igualdade de oportunidades no acesso à educação e à formação, entre trabalhadores de regiões urbanas e de regiões rurais. Até 2019, o número de trabalhadores emigrantes oriundos de zonas rurais era de 291 milhões, sendo expectável que este número possa atingir os 331 milhões, até 2030.
O paradigma económico do país está a mudar e os sistemas educativos e formativos têm de acompanhar esta mudança.
Neste cenário, podemos dividir em três os elementos sobre os quais esta mudança deve assentar: “everyone, everything, and everywhere”.
O primeiro elemento – “everyone” – particularmente ignorado no contexto do sistema de educação chinês, prende-se com a necessidade da formação ser direcionada não só aos mais jovens, incluídos nos sistemas tradicionais de ensino público (como a educação secundária e superior), mas também àqueles que já fazem parte da força de trabalho.
Em 2030, cerca de 75% da força de trabalho, ou aproximadamente 543 milhões de pessoas, será constituída por pessoas que já se encontram a trabalhar hoje. Face a este dado, é clara a necessidade de apostar na educação deste grupo. Esta aposta, pela dimensão e dificuldade que impõe, terá de ser levada a cabo, em complemento ao sistema tradicional de ensino público, por uma variedade de plataformas que, inclusive, podem ser impulsionadas pelo setor privado.
A dificuldade é significativa, ainda para mais quando consideramos as fragilidades do sistema atual, marcado pelo baixo investimento, desconsideração por parte dos trabalhadores e pela falta de um sentimento de urgência que promove a inércia. No entanto, o histórico que a China apresenta neste campo é promissor. Entre 1978 e os dias de hoje, a percentagem da população coberta pela educação obrigatória cresceu de 66% para 100% e, no mesmo período, a percentagem de jovens inscritos no ensino secundário cresceu de 41% para 95%. Em adição, o número de admissões em programas de ensino superior evoluiu de 3,7 milhões de pessoas, em 2000, para 9,1 milhões, em 2019.
(Nota: “Gross enrollement” corresponde ao rácio entre o total de inscrições no ensino superior, independentemente da idade, e a população cuja faixa etária corresponde ao nível de educação superior, isto é, a faixa etária que engloba os 5 anos após o fim esperado do ensino secundário).
O segundo elemento, “everything”, prende-se com a necessidade do sistema de ensino e desenvolvimento de talento providenciar uma multitude de capacidades que permitam às pessoas adaptarem-se a uma economia em rápida transformação.
O conteúdo de ensino tem de evoluir a par da evolução da economia. Se, no passado, eram apenas exigidas aos trabalhadores a capacidade de seguir instruções para atividades repetitivas e a literacia mínima, numa economia pós-industrial e altamente tecnológica, podem surgir situações altamente complexas cuja resolução não se coaduna com o simples cumprimento de instruções. Neste contexto, capacidades mais abrangentes e flexíveis são necessárias. De entre estas, destacam-se as capacidades cognitivas, como o pensamento crítico e a tomada de decisão, as sociais e emocionais, como a liderança e a comunicação, e as técnicas, como a análise de dados. Segundo a McKinsey, até 2030 e por trabalhador, serão necessários realizar cerca de 40 dias de aprendizagem para melhoria destas capacidades.
A formação profissional, mais vocacionada para o trabalho prático, também não deverá ser esquecida. Nesta vertente, há também muito trabalho a desenvolver, visto que o conteúdo da mesma está muitas vezes desatualizado e alguns instrutores não têm nem o conhecimento, nem a prática, necessários para lecionar os conteúdos desejados.
O último e terceiro elemento, “everywhere”, prende-se com a disponibilidade, tanto no tempo como no espaço, destes sistemas de educação e desenvolvimento de talento.
Este fenómeno não está, de maneira alguma, circunscrito à China. É algo pelo qual a grande maioria das economias desenvolvidas está a passar ou irá enfrentar num futuro próximo. Caso seja bem sucedida nesta transição, em especial no que toca ao grau de especialização e digitalização da sua força de trabalho, a China poderá tornar-se num país modelo de onde, quer países desenvolvidos quer em desenvolvimento, poderão tirar ideias para relançar o seu modelo de crescimento económico à luz da Revolução Digital.
Há, tradicionalmente, uma diferença substancial no acesso à educação quando comparamos áreas urbanas e rurais, em detrimento das últimas, que precisa de ser abordada. É ainda relevante sublinhar que grande parte dos trabalhadores que migram, de regiões mais rurais para as cidades, não dispõem nem do tempo nem dos recursos financeiros para estudar ou se inscreverem em cursos. De facto, dos 291 milhões de trabalhadores migrantes, em 2019, apenas 3 milhões, aproximadamente 2% do total, estavam inscritos num programa vocacional ou técnico.
Para atenuar estas diferenças, o uso das tecnologias digitais pode ser determinante, permitindo inclusive o acesso a estes sistemas em qualquer altura do dia. Num país altamente digitalizado como é a China, esta solução, além de promissora, pode encontrar solo fértil para se desenvolver. Além disso, é também de considerar o esforço que deverá ser desenvolvido por parte dos empregadores e que pode ser determinante na disponibilidade do acesso à formação ao longo da vida.
Abordados os elementos essenciais a uma mudança desta escala, é igualmente importante explorar os meios a utilizar para a alcançar com sucesso.
Em primeiro lugar, é importante fazer uso das tecnologias digitais, para tornar os métodos de ensino tradicionais mais apelativos, ao mesmo tempo que se potencia uma abordagem multicanal à educação capaz de, como antes exposto, envolver as zonas mais rurais do país na educação, cuja qualidade passa a ser mais uniforme no território nacional. Adicionalmente, o uso do digital também permite, através da inteligência artificial e da “gamificação” do ensino, a criação de conteúdos cada vez mais interativos e personalizáveis, capazes de estimular e atrair mais pessoas a aprender coisas novas. Na China, já existem bons exemplos de empresas que fazem uso do digital para melhorar a experiência educativa e de formação. Mais especificamente, podemos apontar os casos da Lizhiweike, uma plataforma que permite às pessoas criar clips de vídeo e de aulas abertas ao público, e da Kuaishou, uma aplicação que, em 2019, registou utilizadores ativos na ordem dos 100 milhões.
Este ponto ganha ainda mais relevo no âmbito da pandemia de COVID-19, que acelerou esta transição. A título de exemplo, a startup Zuoyebang, responsável por proporcionar serviços de mentoria, viu os seus utilizadores ativos mensais aumentarem de 106 milhões, em janeiro de 2020, para 157 milhões, em março do mesmo ano.
Em segundo lugar, deve ser criado um ambiente colaborativo entre as entidades que providenciam educação e formação e as empresas que, no futuro, vão empregar os estudantes. Muitas vezes, existe grande disparidade no que toca às capacidades que os empregadores realmente necessitam ou valorizam e as capacidades que são desenvolvidas nos sistemas de ensino. Como tal, uma colaboração mais próxima entre as diferentes partes, seja ao nível da definição dos conteúdos como do financiamento, pode melhorar a qualidade do ensino, promover a inovação e, inclusive, facilitar a colocação de estudantes no mundo profissional.
Além disso, melhorias ao nível da formação vocacional e profissional são necessárias para potenciarem esta mudança da educação.
Quanto à formação vocacional, esta podia tornar-se mais atrativa para os estudantes através, por exemplo, de um modelo “3+4” que conjugue ensino secundário com universitário, permitindo, a quem escolha esta via, não realizar o exame nacional, obrigatório para efeitos de entrada para a universidade. Ao mesmo tempo, podem ser feitas melhorias, através da interação e da coordenação com as empresas, que trariam aos estudantes conhecimentos mais atualizados e experiências mais práticas, com aplicabilidade no seu futuro profissional. O mesmo se aplica aos professores, a quem poderia ser requerida experiência efetiva de trabalho fora do ensino. Estima-se que, até 2030, podem ser exigidos, a mais de 80% dos professores de cursos especializados, algum tipo de experiência profissional na área que lecionam, um aumento significativo quando comparado com os 32% do ensino secundário e 40% do ensino vocacional, verificados hoje.
Quanto à formação profissional, pessoas que já se encontrem a trabalhar têm várias limitações no que toca a inscreverem-se em programas deste tipo, nomeadamente ao nível do tempo, da mobilidade e da flexibilidade para conjugar o horário laboral com o da formação. Para combater estas limitações, poderia reduzir-se a carga horária dos cursos e fazer maior uso da vertente online, já mencionada.
Por último, e talvez o elemento mais importante para o sucesso desta mudança, é a necessidade de que tudo o que foi referido atrás seja acompanhado por uma mudança estrutural no mindset da população. A aprendizagem ao longo da vida precisa de ser vista cada vez mais como algo natural e essencial à sociedade. Uma maneira de alcançar este objetivo, passa pela criação de um sistema de “micro-credenciais”, isto é, a valorização da aprendizagem e consequente certificação fora dos sistemas de ensino tradicionais.
Para isto, é necessária a cooperação entre entidades públicas e privadas, especialmente quando ainda existe muita inércia por parte dos segundos, resultante tanto de falhas de mercado como de perceções erradas dos benefícios que a formação dos trabalhadores pode trazer. Um exemplo claro, prende-se com o facto dos benefícios com eventuais gastos na formação dos trabalhadores poderem vir a ser apropriados por outras empresas, o que leva muitos a considerar os investimentos em formação como custos desnecessários e de baixo valor acrescentado.
Neste campo, alguns analistas acreditam que algum nível de apoio estatal pode ser necessário, nomeadamente através da aplicação de incentivos fiscais para os programas de formação ou pela atribuição de subsídios às empresas que façam uma aposta séria nesta área. É ainda importante realçar, a criação de plataformas de informação orientadas para guiar trabalhadores na sua mudança profissional e para se reinventarem na eventualidade de não conseguirem encontrar o seu espaço na atividade que desenvolvem.
O desafio que se coloca aos chineses é imenso, no sentido em que é necessário requalificar uma boa parte da população para fazer face às mudanças fundamentais pelas quais a economia está a passar. Mais do que mudar os conteúdos de ensino, é necessário mudar-se o foco dos sistemas em vigor e os meios pelos quais estes funcionam, para promover as capacidades essenciais a uma sólida adaptação a uma economia pós-industrial, cada vez mais automatizada e digital, criando os meios capazes de assegurarem a disponibilidade da transição a todos e em qualquer lugar.
Este fenómeno não está, de maneira alguma, circunscrito à China. É algo pelo qual a grande maioria das economias desenvolvidas está a passar ou irá enfrentar num futuro próximo. Caso seja bem sucedida nesta transição, em especial no que toca ao grau de especialização e digitalização da sua força de trabalho, a China poderá tornar-se num país modelo de onde, quer países desenvolvidos quer em desenvolvimento, poderão tirar ideias para relançar o seu modelo de crescimento económico à luz da Revolução Digital.